Problemas refletem em baixo desempenho dos jovens brasileiros em matérias ligadas ao conhecimento dos fenômenos naturais
Análise da poluição do ar, protótipo de uma placa fotoeólica, estudo sobre letramento em crianças que falam três línguas. Estudos e projetos complexos como estes, finalistas da Feira Brasileira de Ciências e Engenharia (Febrace) de 2017, são realizados todos os anos por alunos da educação básica de todo o país, tanto da rede pública como da particular. Sob a orientação de um professor, os próprios estudantes identificam problemas, pesquisam sobre o que já existe e experimentam soluções. Além de aplicar na prática o método científico, ao participar da feira eles aprendem a se comunicar com diversos públicos, desenvolvem competências para o trabalho em grupo, ganham mais autonomia nos estudos e muita autoestima.
Encampar um projeto de ciências ou engenharia nem sempre é um caminho fácil, reconhece a coordenadora da Febrace, Roseli de Deus Lopes. “Num primeiro momento muitos dos alunos não querem participar, e a escola não sabe como dar conta”, afirma. Para mudar a cultura, o esforço é comprovar as vantagens para todos os lados. “Como tem finalistas que vão para uma competição nos Estados Unidos, muitos jovens são seduzidos pela possibilidade da viagem. Para as escolas, tentamos mostrar como o aluno se desenvolve também em outras áreas, como na capacidade de se expressar”, cita Roseli.
O problema é que o alcance de iniciativas como essa, embora presentes em praticamente todos os estados brasileiros e redes, ainda é limitado. “Já tivemos finalistas de mais de mil municípios diferentes, mas perto do desafio do Brasil, ainda é pouco”, afirma a coordenadora da Febrace, que está na 16a edição. De forma geral, o ensino de ciência é bem diferente: conteudista, promovido em aulas totalmente teóricas, focado na acumulação de conceitos sem relação uns com os outros, desconectado da realidade que cerca os estudantes. Como resultado, o desempenho dos jovens brasileiros no Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa, na sigla em inglês) ficou entre os piores do mundo. O país ficou em 63º lugar, entre os 65 participantes.
No teste, realizado em 2015, jovens de 15 anos foram avaliados em três competências: explicar fenômenos cientificamente, avaliar e planejar experimentos científicos e interpretar dados e evidências cientificamente. As perguntas variaram entre o nível de dificuldade (baixo, médio e alto), e as respostas podiam ser dissertativas, de múltipla escolha simples ou múltipla escolha complexa. Os temas envolveram os sistemas físicos, vivos, sobre a Terra e o espaço; foram abordados nos contextos pessoal, local e global. Dentro de uma escala de proficiência de sete níveis, 56,6% não passaram do nível 2, que é considerado básico para “a aprendizagem e a participação plena na vida social, econômica e cívica das sociedades modernas em um mundo globalizado”.
Embora a prova da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) tenha objetivos e metodologias discutíveis, ninguém parece discordar da conclusão de que os brasileiros precisam conhecer mais sobre as ciências – e o lugar privilegiado para esse aprendizado, que é a escola, tem falhado na missão. “O ensino é um mar de sem sentidos. As coisas não se conectam. Desde os anos 1980, há um movimento para tentar ligar as ciências ao cotidiano. A ciência é uma forma de entender e explicar o mundo que nos rodeia, mas essa conexão não é feita”, afirma Sílvia Figueirôa, coordenadora do Programa de Pós-Graduação Multiunidades em Ensino de Ciências e Matemática (Pecim) da Unicamp.
A professora da Unicamp ressalta que a dificuldade em ensinar bem as ciências não é exclusividade brasileira. “A gente acompanha revistas internacionais e percebe que há questões muito semelhantes mesmo em países mais ricos, como os Estados Unidos”, diz. Ela também aponta fatores externos à escola que contribuem para a precariedade do conhecimento científico dos brasileiros. “Faltam políticas gerais de valorização da ciência; o fundamentalismo religioso também atrapalha. Eu enfatizo o fundamentalismo, porque os ataques vêm dos fundamentalistas”, afirma Sílvia, citando ainda a pouca divulgação científica. “Explicações científicas tinham de permear todos os jornais, nos mais diversos assuntos. A gente fala de enchentes, mas não inclui a explicação desse fenômeno pelas ciências.”
Outro ponto que pesa contra é o estereótipo do cientista maluco. “Isso me incomoda, porque seu efeito é retratar a ciência como algo para poucos, em que a maioria não se enquadra. Cria um afastamento”, explica a professora da Unicamp. Para completar a lista, as inovações no ensino de ciências não chegam às escolas de educação básica por deficiências na infraestrutura, na formação docente e na falta de boas perspectivas de carreira docente, males que acometem a educação brasileira em qualquer disciplina.
A melhora no aprendizado de ciências depende de políticas nacionais, setor no qual, segundo Sílvia, não há sinais de avanços. “Na mais recente versão da Base Nacional Comum Curricular, o MEC ignorou várias considerações de quem estuda e trabalha na área”, reclama, citando também a reforma do ensino médio e as diretrizes curriculares das licenciaturas. “A gente tem visto retrocessos. Há muita pressão das grandes corporações, dos sistemas de ensino, editoras, que querem manter o foco na aprovação em provas. As provas padronizadas pautam o que vai ser ensinado.”
Um olhar para além de questões de múltipla escolha e para além da superfragmentação dos saberes: esse é um dos pilares do programa do Pecim, da Unicamp. “A natureza funciona de maneira integrada. Claro que você acaba fazendo recortes para a especialização, mas é importante dar ao aluno a visão da interconexão. Cada ciência tem sua epistemologia própria, mas ao tomar conhecimento de outras formas, o olhar sobre o fenômeno se amplia. É mais do que um modismo, porque tem relevância na própria aprendizagem, no enriquecimento do raciocínio”, explica a coordenadora.
O foco do programa de pós-graduação é a formação de professores da educação básica, para ser um mecanismo multiplicador. “É um trabalho de formiguinha, que a gente faz no dia a dia. Mas penso que ano após ano a gente pode fazer uma onda, ainda que haja barreiras. Espero que, em algum momento, vire um tsunami”, diz Sílvia.
O químico Eduardo Mortimer, professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), lembra que num país altamente estratificado há uma camada da população que conhece bastante sobre ciências. “Se você avaliar como um todo, a falta de conhecimento científico básico é realidade. Mas a parte da população que tem mais posses tem um acesso muito diferente”, afirma. Dessa forma, o Brasil até consegue ter cientistas de grande destaque, mas isso é insuficiente. “Você não tira um país do atraso investindo só na elite”, critica.
Mortimer afirma ainda que até mesmo a ciência produzida hoje nas faculdades está ameaçada com os cortes do governo federal. “Privilegiar as elites é estrutural; o corte do orçamento da ciência é conjuntural. O corte atual está sendo muito fundo. Se você parar a pesquisa hoje, como vai ser o ensino de ciências em cinco anos?”, questiona. De 2014 a 2017, as verbas para pesquisa do CNPq, principal agência nacional, caíram 75%.
Alguns problemas, contudo, são gerais, estruturais e perpassam todos os estratos sociais. “A questão mais profunda é a falta de protagonismo do estudante. Algo que está na educação básica e na superior, em todas as classes sociais. A escola brasileira é feita com alunos sentados de frente para o professor. Isso cria uma defasagem entre o Brasil e o mundo”, afirma. O modelo internacional privilegia a investigação feita pelos alunos durante as aulas de ciências.
Segundo o professor da UFMG, se o estudante fizer um projeto em que recebe apenas orientação, ele mesmo tem de “correr atrás” para entregar o resultado, e o aprendizado é mais eficiente. A falta de protagonismo foi um dos grandes desafios enfrentados pelos estudantes brasileiros que participaram do programa Ciência sem Fronteiras, relata. “Em cada disciplina, o estudante tinha de fazer um ensaio, algo autoral. O aluno brasileiro passava apertado para conseguir.”
O estudante no Brasil vive a contradição de estudar ciências sem sequer observar o fenômeno. “Não existe química, não existe física sem a realidade”, diz Mortimer. Mas as aulas se tornam um repetir da ciência histórica, apenas o que já caiu no consenso. A ciência vem como um discurso de autoridade, é uma disciplina muito vertical”, analisa.
O modelo verticalizado é o experimentado pelo futuro professor durante sua graduação, e acaba sendo repetido na educação básica quando ele vira docente. Portanto, a formação de professores precisa mudar dentro das universidades. “Um professor universitário de química ou física não se vê como um formador de professores, o que é um erro”, diz Mortimer.
Coordenador acadêmico da Faculdade Sesi/SP de Educação e professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP), Luís Carlos de Menezes diz que é preciso se preparar para as inovações científicas e tecnológicas que estão acontecendo agora, assim como para as que estão por vir. Isso, é claro, representa um desafio enorme para docentes e alunos num mundo que passa por mudanças tecnológicas constantemente.
“Os avanços rápidos produzem desafios para que se aprenda”, afirma ele, dando como exemplos as telas e lâmpadas de LED, que é um diodo semicondutor que emite luz quando atravessado por eletricidade, e os exames de ressonância magnética, nos quais se mede a quantidade de água no corpo. “Quem sabe explicar isso? São só dois exemplos de elementos do cotidiano das pessoas que envolvem aspectos muito sofisticados da ciência.”
Assim como desafia, a sofisticação científica cria inúmeras oportunidades de aprendizagem prática. Um professor pode aproveitar elementos do dia a dia, como os diferentes tipos de lâmpada ou um micro-ondas. “Não preciso de um laboratório sofisticado para fazer experiências. Um copo seco não esquenta no micro-ondas porque ele interfere na frequência de rotação da molécula de água. É por isso que certos plásticos podem ir ao micro-ondas, outros não. Temos de deixar que os alunos façam experiências e tirem conclusões”, defende Menezes.
A atitude de investigação pode estar em todos os alunos e ser instigada em diferentes espaços. “Uma criança é capaz de fazer hipóteses, mesmo que sejam hipóteses fantásticas. O professor tem de dialogar com a hipótese que ela fez. Não estimula ter um professor que dá todas as respostas”, afirma Menezes.
Acompanhar a evolução científica implica ainda aceitar que nas ciências as respostas são todas provisórias. “Ela não é permanente, estará quase tudo errado no futuro. É muito bonito a criança saber disso. A gente só conhece e estuda 5% do mundo natural – a maior parte é matéria escura e energia escura. Por isso é preciso estimular as perguntas e as hipóteses. A ciência é uma construção humana belíssima e provisória”, afirma.
A ideia remete à filosofia da ciência e ao clássico A estrutura das revoluções científicas, de Thomas Kuhn, obra de que nos apropriamos, de forma residual, da expressão “quebra de paradigma”. Kuhn mostra a provisoriedade do conhecimento científico, cujas verdades são verdades até a próxima grande descoberta. É por essa ruptura que o ensino de ciências espera.